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UFMG e UFU investem no acolhimento a resgatados de trabalho análogo à escravidão

O Brasil tem mais de um milhão de trabalhadores vivendo em um cenário de escravidão contemporânea e está em 11º lugar entre as nações com maior número de pessoas exploradas, segundo um relatório da ONG internacional Walk Free. Somente em 2023, foram mais de 1.200 resgatados dessa situação no país, de acordo com o Ministério do Trabalho e Emprego. 

Resolver esse problema histórico e sistêmico não depende apenas da fiscalização de auditores, mas também de prevenção, educação, engajamento dos membros do Judiciário e acolhimento às vítimas. Um trabalho complexo e multidisciplinar que vem sendo realizado dentro de duas instituições públicas mineiras, a Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e a Universidade Federal de Uberlândia (UFU).

Em ambas instituições, funcionam clínicas de enfrentamento ao trabalho escravo, relacionadas aos cursos de Direito. São projetos que abarcam iniciativas de pesquisa, ensino e extensão sobre as mais diferentes frentes de combate à exploração criminosa da mão de obra de pessoas de alta vulnerabilidade social. 

De acordo com Lívia Mendes Miraglia, coordenadora da clínica da UFMG, pesquisadores da universidade analisaram 1.494 ações criminais e 432 ações civis públicas na Justiça do Trabalho sobre casos de situação análoga à escravidão entre 2008 e 2019. O levantamento provou que há uma imensa impunidade no Brasil.

“Verificamos que existe uma pirâmide da impunidade. constatamos que, de cada cem pessoas acusadas, apenas quatro são condenadas e só uma delas recebe pena acima de 4 anos. Ou seja, apenas uma poderá vir a ser presa pelo crime”, afirma a professora. 

Segundo ela, o problema disso não é a lei, mas o tempo de duração dos processos, que muitas vezes têm o prazo expirado. “A maioria dos empregadores é de uma classe social abastada, consegue contratar bons advogados que sabem usar a lei a seu favor. E aí o processo vai demorando, demorando… às vezes a pessoa morre antes do fim. Isso deixa a sensação de que o crime compensa”, explica Lívia. “Além disso, no Judiciário, muitos se identificam mais com a classe empregadora do que com os empregados e isso acaba influenciando também os processos. Existe muita relativização da situação”.  

Boa parte da sociedade ainda tenta relativizar o lado dos empregadores devido a uma cultura que remonta a um passado escravagista, de acordo com a pesquisadora. "Temos uma herança escravocrata, racista, machista e elitista. Parte da sociedade acredita que uma família faz um favor quando leva uma menina para dentro de casa para fazer os afazeres domésticos, sem pagar nada por isso", argumenta Lívia. 

Criada em 2015, a clínica da UFMG foi pioneira no país. Além da produção de pesquisa, ela trabalha o engajamento de estudantes de Direito e realiza palestras em escolas públicas e particulares de Belo Horizonte. O projeto oferece atendimento jurídico gratuito a resgatados. Foram cerca de 200 assistidos até o momento e mais de 90 ações trabalhistas movidas por eles. 

Acolhimento de resgatados em Uberlândia

Na UFU, a clínica de enfrentamento ao trabalho escravo foi criada em 2016 e já atendeu a mais de 600 pessoas. Um dos principais diferenciais do trabalho exercido em Uberlândia e região é o acolhimento aos trabalhadores que acabaram de sair de uma situação de exploração extrema.

“Percebemos que o pós-resgate é tão importante quanto o resgate em si. Normalmente, após a ação dos auditores, a pessoa retorna ao seu lugar de origem e recebe três parcelas de seguro-desemprego. Mas existe uma dificuldade em o resgatado se reconhecer como vítima. É preciso oferecer um trabalho de autoconhecimento, alfabetização, formação profissional”, explica Márcia Leonora Orlandini, coordenadora da clínica da UFU.

Segundo ela, o caso de acolhimento mais emblemático da equipe foi o de Madalena Gordiano, resgatada em Patos de Minas em novembro de 2020. Ela trabalhou para uma família por quase 40 anos sem receber direitos trabalhistas e seu caso serviu de alerta para os muitos casos de escravidão contemporânea no âmbito doméstico que existem no país. 

“Os casos mais complexos são os trabalhadores domésticos e de longa permanência no âmbito rural. Porque essas pessoas perderam vínculos com suas famílias e o resgate se torna mais difícil, é preciso de uma maior atenção”, relata Márcia, lembrando que muitos trabalhadores resgatados no Triângulo Mineiro são provenientes dos estados do Nordeste e de outras regiões mineiras, como Noroeste e Norte de Minas.

O trabalho na clínica da UFU é encabeçado pelo curso de Direito, mas aos poucos foi se transformando em um projeto multidisciplinar, envolvendo pesquisadores dos mais de 90 cursos de graduação da universidade, como Psicologia e Medicina. Além de resgatados, a universidade atende a grupos de extrema vulnerabilidade social, como imigrantes refugiados (especialmente de Afeganistão, Bangladesh, Haiti e Venezuela).

Hoje, a instituição conta também com Centro de Extensão em Direitos Humanos Madáh, um projeto guarda-chuva para abraçar as mais diferentes pesquisas e iniciativas de extensão que tenham como objetivo o enfrentamento à escravidão contemporânea. 

Há esperança de melhoria no cenário

Após a repercussão sobre o caso de Madalena Gordiano, houve um crescimento na divulgação de informações sobre o trabalho doméstico análogo à escravidão. Consequentemente, os órgãos responsáveis receberam mais denúncias. O número de casos de resgate em âmbito doméstico subiu de três (em 2020) para 31 (em 2021).

Outro divulgador do tema foi o podcast “A mulher da casa abandonada”, de Chico Felliti, sobre uma moradora de um casarão velho em Higienópolis, em São Paulo, que foi condenada nos Estados Unidos por torturar e não pagar direitos trabalhistas a uma empregada doméstica brasileira. 

Lívia Miraglia acredita que a divulgação de informações sobre o tema na mídia, na internet e nas escolas pode ajudar a transformar a pirâmide de impunidade. “Após a divulgação do caso da Madalena e do podcast, houve um aumento exponencial nas denúncias. A mídia mostra que a pessoa pode fazer uma denúncia anônima e que isso tem efeito. Vai havendo uma mudança cultural e social que obviamente vai influenciar todos os outros aspectos, especialmente jurídicos”, explica a professora.