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O que é ser inteligente na era da Inteligência Artificial?

Em 1965, a coleção de livros Life Nature Library, uma espécie de Wikipédia da época, publicou uma ilustração que se tornou o ícone da evolução do homem. A ‘Marcha do Progresso’ mostra a linha evolutiva que começa do macaco até chegar ao humano moderno. É uma figura que sintetiza 25 milhões de anos de mutações do ser vivo que desde então não encontrou nenhum outro concorrente na vida natural. Olhando bem para a imagem,  já parou para analisar quem virá depois de nós nesta linha evolutiva? Será que existirá algum outro ser capaz de superar nossa intelectualidade? Se você está acompanhando os noticiários, deve imaginar um forte candidato: a inteligência artificial.

Nos últimos meses, o surgimento do ChatGPT e geradores de imagens manipuladas por IAs acenderam um alerta mundial sobre até que ponto esta autonomia descontrolada é perigosa para nosso futuro e se, afinal, nossa inteligência será superada pela máquina. Alguns defendem teorias quase apocalípticas de que esta intelectualidade sintética pode gerar a extinção da humanidade, enquanto outras alegam que a tecnologia não oferece riscos e a principal preocupação é com a regulação destas tecnologias, que atualmente estão nas mãos de grandes empresas tecnológicas conhecidas como Big Techs. Chegaremos lá. Antes, precisamos falar da diferença entre a inteligência humana e a artificial.

“A inteligência humana refere-se à capacidade dos seres humanos de pensar, raciocinar, aprender, tomar decisões, compreender e resolver problemas de forma complexa. Os seres humanos são capazes de usar a intuição, a criatividade e a empatia para lidar com desafios. Por outro lado, a IA é baseada em algoritmos, modelos matemáticos e técnicas de processamento de dados que permitem que as máquinas imitem ou simulem algumas das capacidades cognitivas humanas”. Esta aspa poderia ser dita por algum estudioso da área, mas foi escrito pelo ChatGPT, ao ser questionado sobre estes dois tipos de inteligência. 

Apesar do termo bem estruturado e com afirmações convincentes no texto acima,  a afirmação da IA foi baseada a partir de um banco de dados que o site da OpenAI, desenvolvedora do ChaGPT, pega na internet, como um grande Google, mas ao invés de te mandar os sites que falam sobre o assunto, escreve um texto mastigado para o usuário. É justamente por isso que uma corrente de pensadores e especialistas acreditam que não há o que falar sobre superação intelectual, pois tudo não passa de uma estrutura sintética que não tem o poder de raciocínio. É apenas uma grande enciclopédia moderna.

“Particularmente, não acredito que as inteligências artificiais vão superar nossa capacidade intelectual. Está muito distante disso acontecer. O cérebro humano tem uma complexidade muito maior do que somente uma caixa de conhecimento que tem uma certa autonomia para criar. É como dizer que uma enciclopédia tem o mesmo refinamento do cérebro humano”, traduz o neurologista Tarsis Faris, Coordenador da Neurologia do Hospital Mater Dei Eme.

Tarsis explica que não é tão simples comparar qualquer coisa com algo tão complexo como nosso cérebro, o principal órgão evolutivo que nos trouxe até aqui. Estudar a capacidade cognitiva da massa cinzenta iniciou no século XIX, pelo primo de Charles Darwin, o antropólogo Francis Galton. Tomando como base os estudos da origem das espécies, Galton criou testes psicológicos que mais tarde serviram de inspiração para o teste que até hoje é utilizado, o quociente de inteligência (QI). O psicólogo Lewis Terman popularizou o QI, agrupando graus cognitivos de acordo com um teste que certamente você já fez. 

Múltiplo pensar
Na década de 80 o professor da Universidade de Harvard, o psicólogo Howard Gardner foi além do QI, lançando a teoria das múltiplas inteligências, no plural mesmo. O tradicional QI abraçava apenas as inteligências lógico-matemático e linguística, enquanto Gardner mostrou que existem outras: musical, espacial, corporal-cinestésica, intrapessoal, interpessoal, naturalista e existencial. Nos anos 90, a inteligência emocional entrou no time. É como aquele professor de exatas muito inteligente, mas que não tinha muita desenvoltura para ensinar a seus alunos de forma didática e saia como professor chato. Ele não possui muita  inteligência interpessoal (ou emocional), mas é um CDF na parte lógico-matemático. 

“A inteligência é um uma questão muito complexa e multifacetada. Há alguns tipos de capacidades cognitivas diferentes das outras, mas não significa que sejam menos inteligentes.  Na verdade, não sei se existe um intelecto ideal, até porque inteligência é uma coisa que é um componente heterogêneo, pois será diferente em todas as pessoas. Cada pessoa tem a sua capacidade de desenvolvimento para cada tipo de inteligência”, completa o  neurologista Tarsis Faris.

Nós, os Homo Sapiens, já somos um produto evolutivo que superou outros hominídeos no quesito pensar. Nossos irmãos, os Homo Erectus, foram os primeiros a desenvolverem o cérebro a ponto de descobrir o fogo e a vantagem de ficar em pé. Entretanto, foram os sapiens que souberam raciocinar e saber como usar estas descobertas. A evolução da inteligência, portanto, é contínua. Continuamos a pensar para sobreviver, sempre no gerúndio. A questão agora é saber o que é ser inteligente na era das IAs. Neste caso, nem se trata de múltiplas intelectualidades. A questão atual é o quanto você deixa a tecnologia pensar por você. 

“Ser inteligente agora? É saber ponderar o tempo desse consumo tecnológico. É compreender que os excessos estão contra o bem-estar. É não se permitir viver em função de tecnologia. A imersão no excesso de tecnologia acaba influenciando indiretamente a nossa capacidade intelectual. Desse jeito, vemos pessoas mais desatentas, evitando esforços mentais mais complexos, uma vez que o consumo tecnológico nos poupa do estímulo cerebral mais intenso”, explica a psiquiatra Camille Batista, professora do curso de Medicina da Unex. 

Camille não acredita que nossa inteligência será superada pelas artificiais, mas afirma que estamos (muito) dependentes dela. E isso, sim, pode deixar futuras gerações sem potencializar seu intelecto, pois as IAs estão dando tudo de bandeja. “Ponderação é a palavra de ordem. Acredito que nada supera a nossa capacidade mental, mas não podemos permitir que, por desuso da nossa potência cerebral, isso aconteça. É a primeira vez na história que o QI dos nossos filhos será menor que os nossos. É justamente o menor esforço cerebral gerado pela comodidade das telas”, completa. 

Esta comodidade está em qualquer rotina diante das telas. Sabe quando o Netflix começa a colocar filmes na sua tela, sem você pedir? Você acaba se interessando e clica ali. De repente, faz uma pesquisa sobre um tênis e alguns minutos depois está cheio de publicidade de calçados variados. Seu filho procura no Youtube sobre a Galinha Pintadinha e logo em seguida ele já emergiu em centenas de vídeos semelhantes, num ciclo sem fim. Agora, é possível escrever “o papa tomando açaí no Farol da Barra” e o programa gera uma imagem deste pensamento. Tudo é tão fácil, que a nova geração não vê necessidade de raciocinar. A questão, portanto, não é o que é ser inteligente no mundo atual, mas como estamos exercitando nossa destreza analítica. 

Exercício mental
No livro ‘A Fábrica de Cretinos Digitais’, o neurocientista francês Michel Desmurget, diretor de pesquisas do Instituto Nacional de Saúde da França, mostrou que, assim como afirmou a doutora Camille Batista, pela primeira vez na história, o QI dos filhos está abaixo dos pais. Para ele, o tempo na frente da tela também é o principal fator.

“Observou-se que o tempo gasto em frente a uma tela para fins recreativos atrasa a maturação anatômica e funcional do cérebro em várias redes cognitivas relacionadas à linguagem e à atenção”, relata Desmurget, em entrevista à BBC.

Ele reforça que o problema não está na tecnologia em si, mas no tempo que dedicamos a ela e o que nossos filhos estão consumindo. 

Esta nova forma de sub-utilizar o cérebro já tem sido percebido inclusive nas salas de aula. “O smartphone, nesta questão, já é um problema pro desenvolvimento humano. E isso eu consigo notar enquanto professor, de dez anos pra cá. Há uma diferença de atenção, de foco, de manutenção de interesse, de ânimo e o lastro de referências fica mais restrito. Eu já ouvi um aluno perguntar quem era Tim Maia. Foi este ano”, conta o filósofo baiano Saulo Dourado.

Se o filósofo mostra preocupação com o futuro de nossa inteligência, alguns especialistas que mergulham no mundo tecnológico enxergam esse bum da IA como uma ameaça da nossa própria existência. 

Nos últimos meses, os próprios criadores das IAs assinaram um manifesto pedindo a interrupção das pesquisas e avanços nesta área. Eles temem que este novo tipo de intelecto supere o próprio homem na forma de pensar. Considerado o pai da inteligência sintética, Geoffrey Hinton pediu demissão do Google e já admite que toda sua criação pode ser um Frankenstein ganhando vida e querendo destruir seu próprio criador. 

"Neste momento, eles não são mais inteligentes do que nós, até onde eu sei. Mas acho que em breve poderão ser. Cheguei à conclusão de que o tipo de inteligência que estamos desenvolvendo é muito diferente da inteligência que temos. Então, precisamos nos preocupar com isso”, disse Hinton, à BBC de Londres, logo após sua saída. "O risco da IA assumir o controle da sociedade é real", completa o pai do AI, indicando até uma probabilidade de sermos superados no quesito inteligência: 40%.

Big Techs
Uma das principais referências sobre IA no país, a economista e escritora Dora Kaufman tem uma ampla reflexão sobre este conflito de inteligências. Para ela, a grande preocupação não é a ferramenta ou se ela vai superar a intelectualidade humana, mas quem a controla, conhecidas como Big Techs, um clube do Bolinha com as principais empresas de tecnologia, como Google, Apple, Meta, Amazon e Microsoft. Para que a IA não se torne um grande vilão, é preciso regulamentar o uso desta ferramenta para que seja feita de forma responsável.

“A inteligência artificial é uma tecnologia disruptiva. Ela muda a lógica de funcionamento da economia e da sociedade. O problema maior é justamente o impacto dessa tecnologia na sociedade e a concentração de quem detém ela. As Big Techs estão gerando  uma concentração de mercado e um poder descontrolado destas empresas. Por isso eu defendo veementemente a regulamentação”, disse Dora Kaufman.

Ela acredita que todo este receio dos criadores possuem muito mais preocupação no quesito controle sobre o avanço da IA. 

“São problemas éticos diferentes. Cada setor de aplicação [da IA] tem suas questões que precisam ser equacionadas. [a regulação] É uma forma de proteger a sociedade, sim. Eu acho que todas as pessoas têm que ter alguma familiaridade com essa tecnologia. Vamos fazer um paralelo com o carro? Eu não sei como se fabrica um automóvel,  mas eu sei como dirigir, o momento de frear, desviar… Precisamos ter um conhecimento mínimo e regulação para proteger a sociedade, pois esta tecnologia elevou o nível de forma muito rápida. Pior que está tão rápido, que é capaz da regulação já nascer defasada”, avisa. 

As Big Techs não estão preocupadas com ética e regulação. Muito pelo contrário. Neste mês, Google e Telegram exibiram desinformações sobre a PL das Fake News, que estipula regulamentação e fiscalização de plataformas digitais e está em discussão no Congresso Nacional. Em março deste ano, a Microsoft adquiriu o ChatGPT por US$ 11 bilhões e demitiu 30 pessoas ligadas à ética em Inteligência Artificial da empresa. Não existe mais este setor na firma. Meta, Google, Amazon e Twitter também demitiram integrantes que cuidavam da ética. 

Segundo Kaufman, existem duas preocupações emergenciais que precisam de discussão de toda sociedade. Uma é a fake news. O ChatGPT, por exemplo, ainda erra muito. Imagine todos os dias alguém produzindo conteúdo falso e jogando na internet. A própria internet alimenta o ChatGPT. Pode chegar um momento que será difícil distinguir o que é verdadeiro ou falso. A outra é o impacto que a IA pode ter na economia. Profissões podem sumir do mapa com a automação de tudo no mundo. Por isso, Kaufman acredita que pensar sobre a diferença entre inteligência humana e artificial é o menor dos problemas. 

“Definir se a inteligência artificial é inteligente não vai acrescentar muita coisa agora, pois há a preocupação do aspecto social. Hoje existem inúmeras tarefas que estão sendo automatizadas e dispensando o trabalhador humano. Esta, sim, é uma questão social muito grave. Neste aspecto, o homem precisa evoluir para o que estamos vendo agora. É preciso qualificação para assumir novas funções dentro deste cenário de automação”, diz a autora do livro ‘A inteligência artificial irá suplantar a inteligência humana?’.

Segundo o Fórum Econômico Mundial realizado em 2021, estima-se que a soma de empregos perdidos para a Inteligência Artificial será de 5 milhões até 2024, incluindo diversas profissões, como telemarketing, caixa de supermercado e até o jornalismo. Não está fácil para ninguém.

“A inteligência artificial veio pra ser um concorrente da gente ou para ser parceira? Olha, isso é uma discussão muito complexa. A inteligência tem dezenas de definições e muitos tipos quando falamos do aspecto humano. Eu gosto de pensar que inteligência é a capacidade de a gente definir objetivos e ter raciocínio e ação para executá-los, independentemente da geração. Já a inteligência artificial não define os seus objetivos. O ser humano que desenvolve o sistema e diz quais são os objetivos da IA. Entende a diferença?”, completa. 

O que resta para nós, seres racionais, é pensar menos no apocalipse das ficções científicas e imaginar que a inteligência segue a cartilha da evolução na natureza: evoluir para sobreviver. Pai da teoria das espécies, Charles Darwin acreditava que uma forma de vida só consegue manter seu legado se adaptando aos meios que ele vive. Não é o mais forte, tampouco o mais inteligente que sobrevive, mas o que melhor se adapta às mudanças. Você está pronto para se adaptar a nova era das inteligências artificiais?

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Quais são as múltiplas inteligências humanas?

  • Lógico-matemática: É o carro-chefe nos testes de QI. É a capacidade de raciocinar e resolver problemas com agilidade e lógica, que pode ser um cálculo matemático ou resolver uma charada. 
  • Linguística: Transformar o pensamento em fala e escrita. Também é um fator decisivo nos testes de QI e também está ligado ao poder interpretativo das coisas.
  • Espacial: Como o nome diz, é a inteligência ligada ao espaço, que vai desde a noção de formas geométricas até saber mexer no Waze. É um intelecto importante também para quem gosta de geografia ou até desenho. 
  • Naturalista: Tem relação muito própria com o meio ambiente. Sabe cuidar de plantas e tem uma consciência ambiental apurada.
  • Interpessoal: É a capacidade de se relacionar num ambiente social.
  • Intrapessoal: Está ligado ao autoconhecimento.
  • Corporal-cinestésica: Conhecer o corpo é conhecer e mente. Tem uma inteligência apurada na coordenação motora e corporal.
  • Musical: Facilidade em desenvolver um dom com instrumentos musicais e se expressar por meio do som.
  • Existencial: Uma consciência e interesse sobre objetivos futuros e questionamentos sobre a vida.
  • Emocional: Um bônus extra. Sem esta inteligência do autocontrole, as outras inteligências podem sofrer alterações. 

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Como potencializar seu cérebro

  • Negue a facilidade: Evite as comodidades das inteligências artificiais. Elas acabam fazendo com que você não precise usar o raciocínio e potencializar o cérebro. O algoritmo é bom, mas com moderação.
  • Mais livros de papel: Sim, a leitura ainda é o melhor remédio para sua inteligência. Leitura na tela é boa, mas você acaba se distraindo e procurando outras coisas no celular. No livro físico, você se concentra mais.
  • Passatempo: O cérebro gosta de desafios. Jogos de tabuleiro, passatempos, palavras cruzadas (pode ser no celular) e outros jogos que exigem raciocínio te ajudam a melhorar seu intelecto.
  • Corpo são… Exercícios físicos regulares melhoram a concentração e memória da sua massa cinzenta.. 
  • Novas paixões: Escolher uma nova profissão, decidir pintar ou aprender violão é um ótimo exercício para manter seu cérebro ativo e com novos desafios lógicos. 
  • Durma e descanse: Se seu computador precisa desligar, imagine seu cérebro. Nosso corpo também precisa de descanso. Também tire férias da rotina, pois o cérebro também curte dar um tempo nos afazeres diários.