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O caso do juiz Appio e o TRF-4: quando o estado de exceção se materializou

Thompson Flores, presidente do TRF4, e Sergio Moro quando ministro da Justiça de Bolsonaro

POR EDWARD MAGRO

“Ora, é sabido que os processos e investigações criminais decorrentes da chamada ‘Operação Lava-Jato’, sob a direção do magistrado representado, constituem caso inédito (único, excepcional) no direito brasileiro. Em tais condições, neles haverá situações inéditas, que escaparão ao regramento genérico, destinado aos casos comuns. Assim, tendo o levantamento do sigilo das comunicações telefônicas de investigados na referida operação servido para preservá-la das sucessivas e notórias tentativas de obstrução, por parte daqueles, garantindo-se assim a futura aplicação da lei penal, é correto entender que o sigilo das comunicações telefônicas (Constituição, art. 5º, XII) pode, em casos excepcionais, ser suplantado pelo interesse geral na administração da justiça e na aplicação da lei penal.

A ameaça permanente à continuidade das investigações da Operação Lava-Jato, inclusive mediante sugestões de alterações na legislação, constitui, sem dúvida, uma situação inédita, a merecer um tratamento excepcional. Parece-me, pois, incensurável a visão do magistrado representado.”

Desculpem-me expô-los a essa leitura tétrica, mas esses dois curtos parágrafos são o cerne da decisão da corregedoria do TRF4, que negou provimento ao pedido de instauração de processo administrativo disciplinar contra o então juiz Sergio Moro pela escuta ilegal seguida de ampla divulgação de conversa telefônica entre Dilma Rousseff, então presidenta em exercício, e Lula, ex-presidente à época.

Em um único parágrafo, o relator do voto decisório usa sete (isso mesmo, sete) vezes alternadamente os verbetes “único”, “inédito” e “excepcional” como preparação para o cinismo jurídico que viria na sequência, em forma de decisão; e é claro que, com tanto ineditismo, unicidade e excepcionalidade a única e inédita conclusão possível seria a excepcionalidade da incensurável visão do magistrado.

Tudo piora mais ainda no parágrafo conclusivo do voto, em que o relator estende a excepcionalidade da não-censura ao crime de escuta ilegal e divulgação de conversa da presidenta a outros atos que poderiam vir a ser – e foram – cometidos pelo ex-juiz. Diz o relator “Enfim, cabe enfatizar que, antes da Reclamação nº 23.457, não havia precedente jurisprudencial de tribunal superior aplicável pelo representado, mesmo porque, como antes exposto, as investigações e processos criminais da chamada ‘Operação Lava-Jato’ constituem caso inédito, trazem problemas inéditos e exigem soluções inéditas. Em tal contexto, não se pode censurar o magistrado, ao adotar medidas preventivas da obstrução das investigações da Operação Lava-Jato.”

De acordo com o voto, no caso excepcional do combate à corrupção de “altos agentes públicos e poderes privados até hoje intocados”, a violação de preceitos legais, a violação dos direitos humanos das pessoas até mesmo o desrespeito frontal da Constituição Federal seria aceito.

Segundo o jurista Pedro Serrano, com este voto o TRF4 foi o primeiro órgão de justiça do mundo a declarar o “estado de exceção”; ainda segundo o jurista, não há em nenhum outro país democrático a instauração de um estado de exceção do direito publicado por uma corte e, mesmo em ditaduras ocorrerem raramente.

Em termos concretos, esse voto foi o salvo conduto regimental (não confundir com constitucional) dado pelo TRF4 ao ex-juiz para ele, usando do poder violento do Estado, cometesse o sem-número de arbitrariedades e ilegalidades assinaladas pelo STF no julgamento de sua parcialidade. A partir desse voto um novo código penal – o código penal do Russo, conforme revelado pela Operação Spoofing – passou a ser aplicado em Curitiba.

Os efeitos da aplicação do código do Russo são bem conhecidos e estão bem detalhados no relatório do DIEESE (a lava jato nos custou 4,4 milhões de empregos, 3,6% do PIB, deixou de arrecadar R$ 47,4 bilhões de impostos e R$ 20,3 bilhões em contribuições sobre a folha, além de ter reduzido a massa salarial do país em R$ 85,8 bilhões, quase extinguiu a indústria naval, quebrou 3 das maiores construtoras do mundo, levou à privatização de setores da Petrobrás, entre outros males), intensificou a corrosão da democracia e alavancou a ascensão da extrema-direita ao poder, o que resultou em mazelas como o genocídio de populações originárias e desmatamento generalizado, genocídio pandêmico, aumento descontrolado da corrupção, etc, etc, etc.

Felizmente, no julgamento do ex-juiz no STF, quando lhe foi imputado o crime da parcialidade – o mais hediondo dos crimes que pode ser cometido por um juiz – todos os poderes excepcionais concedidos ao juiz foram confiscados, infelizmente depois de muito estrago à incipiente democracia brasileira.

Ao finalizar seu voto como relator, o ministro Gilmar Mendes disse que “algo muito estranho aconteceu em Curitiba, onde ocorreu um verdadeiro linchamento do direito” e sugeriu que as instituições responsáveis deveriam instaurar processo investigativo para “identificar o que aconteceu e por que os mecanismos de controle não funcionaram e permitiram que a República de Curitiba fizesse tanto mal ao direito e à nação”.

O magistrado ressaltou que a atuação criminosa da lava jato, que se deu com excepcionalidades garantidas e confirmadas pelo TRF4, tinham como “escudo protetor a plasticidade e a beleza retórica do combate à corrupção, usado como mote catalizador do desejo difuso de todos, afinal quem se opõe ao combate enérgico da corrupção?”.

Por consequência, não resta dúvida do empenho do TRF4 na cruzada lavajatista. No entanto, ainda esta semana, todo o zelo mostrado pelo TRF4 no combate à corrupção de “altos agentes públicos e poderes privados até hoje intocados” sofreu um severo arranhão; em ação, dentro das excepcionalidades da casa, a corregedoria – que é ocupada pelos juízes mais antigos e influentes – removeu inconstitucionalmente o juiz Eduardo Appio, titular da 13a. Vara de Curitiba, onde tramitam os processos da lavajato e o substituiu pela juíza Gabriela Hardt, a conhecida lavajatista copia-e-cola. O motivo da inconstitucional remoção em caráter liminar, sem sequer ouvir o juiz, é muito prosaica: uma suposta ameaça feita a um advogado, filho de um juiz do TRF4, expressa na frase “o senhor tem certeza que não tem aprontado nada?”, dita ao final da ligação.

Não é possível ver alguma ameaça na frase. Como não convenceu, despertou a suspeita generalizada que o afastamento do juiz se deu por outros motivos, como por exemplo o fato dele ter, depois de 5 anos, ouvido o depoimento do advogado Tacla Duran, que diz ter provas robustas de que fora extorquido pela lavajato, incluindo comprovante de depósito bancário.

Na opinião de Pedro Serrano, o afastamento liminar do juiz Appio da 13a. Vara de Curitiba foi mais uma, das muitas manifestações autoritárias do TRF4, que ao não se submeter às cortes superiores viola institucionalidade e rompe o pacto federativo; na opinião dele, a sugestão de investigação proposta pelo ministro Gilmar Mendes deve obrigatoriamente se estender ao TRF4 pois sem a recondução do TRF4 ao leito normal, a democracia brasileira estará sob risco.