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Junho de 2013 dez anos depois: avanços e desafios da tarifa zero

Reprodução Redes Sociais

do BrCidades

Junho de 2013 dez anos depois: avanços e desafios da tarifa zero

por Paolo Colosso, Ísis Detomi e Gabriela Mallmann

Passados dez anos, Junho de 2013 segue sendo um dos fenômenos mais marcantes – e disputados – da década. Nos termos de Rodrigo Nunes em Do Transe ao caos, um trauma coletivo, uma série de nós por serem desatados.  Muitos ainda vêem naqueles dias convulsivos a abertura da caixa de pandora que levou à gestão Bolsonaro, o poço mais fundo do país desde a redemocratização. Há outros que veem ali a entrada em cena de uma nova geração de personagens do campo transformador, uma nova esquerda. Há também os pragmáticos, que simplesmente desistiram de dar conta da complexidade do evento, mas extraem dele seus potenciais. 

Os últimos anos nos deixaram ver que Junho não pode ter levado tout court ao bolsonarismo, porque este remonta às feridas mal curadas da ditadura. A sanha autoritária tem resquícios do escravismo de séculos. Como lembra Camila Rocha em Menos Marx, mais Mises – o liberalismo e a nova direita no Brasil, o bolsonarismo também é fruto de outro fenômeno, uma nova direita desavergonhada que se organizava em redes descentralizadas desde o início dos anos 2000. Sem nos alongar: o Brasil profundo esperava há muito dar feições aos anseios regressivos de que o capitão é síntese. Isso não significa negar que a indignação difusa – sobretudo no que ficou conhecida como a terceira fase dos protestos de Junho – foi condição fundamental para uma direita reativada e mais massiva, com novos pontos de apoio e novo repertório de ação. 

Acerca da leitura segundo a qual em Junho se formou uma nova esquerda, esta é acertada na medida em que insere o fenômeno na chave do que David Harvey denominou “cidades rebeldes”, o ciclo de lutas deflagrado em 2011 nas praças de todo o mundo, de onde saíram forças importantes como o Podemos espanhol, o Siryza grego e a França Insubmissa. Mas é fato também que as forças mais projetadas posteriormente, como o MTST – o Movimento de Trabalhadores Sem Teto –, em 2013 já detinha um cinturão de lutas consolidado em periferias de São Paulo e sua nacionalização ocorreria de todo modo – por outros fatores. O próprio Movimento Passe Livre já tivera vitórias importantes em Salvador e Florianópolis anos antes. Os movimentos de juventude já vinham crescendo desde a mudança no perfil das universidades em meados dos 2000. 

Já este texto é pragmático no sentido de não buscar resolver a complexidade do fenômeno Junho, mas sim avaliar seus desdobramentos e potenciais, com atenção à pauta central da tarifa zero. Não sem antes defendermos que, desde a explosão de junho até a atualidade, há um certo déficit explicativo das análises políticas: a persistente incompreensão das contradições específicas da produção do espaço, um significativo desinteresse pelas cidades e o poder local.

Acerca dos antecedentes de Junho, entre as poucas análises que conseguiam transitar entre escalas – entre o fenômeno urbano e a conjuntura nacional –, foi o artigo ” É a questão urbana, estúpido” de  Ermínia Maricato. Neste,  a urbanista já atentava para o fato de que o crescimento econômico distributivo não foi suficiente para mitigar a espoliação urbana e a periferização. Nas grandes cidades, os mercados aquecidos – alavancados pela liberação de grandes somas via política habitacional contracíclica –  levaram a um boom imobiliário inédito e ao aumento significativo no custo de vida: a alta no aluguel se dava muito acima da valorização de salários.  No caso do valor de compra, a alta era mais do que o dobro do que a inflação – em capitais como São Paulo, Rio de Janeiro, Recife e Belo Horizonte.

Em 2023, um ponto fundamental a ser incluído em qualquer balanço sobre junho é o seguinte: a tarifa zero deixou de ser o ponto utópico e irrealizável para figurar como um fator não só perfeitamente passível de ser implementado, mas também como estruturante e matricial ao avanço de outras pautas.

Manifestação pelo Passe Livre em São Paulo, 2017. Fonte:Paolo Colosso

Tarifa Zero: de utopia inviável à política matricial do direito à cidade

Fonte: Elaboração Própria

Um primeiro aspecto a ser destacado é o de que, nos últimos dez anos, houve um aumento expressivo do número de prefeituras, em todas as regiões do país, que implementaram tarifa zero. Até junho de 2013, eram 15 cidades. Atualmente são 74 municípios, totalizando 3,8 milhões de habitantes beneficiados. Entre esses municípios, 45 têm até 50 mil habitantes, como Holambra (SP), Presidente Bernardes (SP), Faxinal (PR) e Ivaiporã (PR). Dezoito municípios têm entre 50 a 100 mil, como Itapeva (SP), Jaboticabal (SP) e Porto Feliz (SP). Outras cinco cidades têm entre 100 e 200 mil habitantes, como Paranaguá (PR), Formosa (GO), Ribeirão Pires (SP), Ibirité (MG) e Maricá (RJ).  E seis municípios têm acima de 200 mil habitantes, como Caucaia (CE), Volta Redonda (RJ) e São Luís (MA). Dos 74 municípios, 67 aderiram integralmente à política, em 3 deles a tarifa zero abrange todo o sistema somente em dias específicos e, em outros 4 municípios, a tarifa zero ocorre todos os dias da semana, mas em linhas específicas.

De fato, nas grandes cidades os desafios são maiores. Em Volta Redonda (RJ), há um ônibus elétrico circulando com tarifa zero. São Luís (MA) avançou por meio do projeto-piloto  “Expresso do Trabalhador”, para trabalhadores do comércio após às 21h e para áreas específicas da cidade.

Interessante perceber como a tarifa zero foi politicamente ressignificada. Se há dez anos ela representava o elemento mais utópico – e considerado irrealizável – de junho de 2013, os últimos anos tem mostrado não apenas que esta é viável, mas também é considerada um capital político para governantes de todos os espectros. Em Maricá (RJ) a medida foi tomada em 2014 pelo PT. Em Assis (SP) – onde houve tarifa zero apenas durante a pandemia – e Parobé (RS) foram prefeitos do PDT. Em Ibaiti (PR) e em Silva Jardim (RJ) foi implementada por prefeitos dos Republicanos. Em Vargem Grande Paulista (SP), por Josué Ramos do PL. Em Forquilhinha (SC), Morungaba (SP) e Governador Celso Ramos (SC) foram prefeitos do PSD.Pragmáticos das mais diversas posições tem se aproximado no seguinte: a mobilidade é uma política matricial, fator gerador de outras diversas garantias e oportunidades. Nos termos do especialista Daniel Santini, trata-se de uma “tecnologia social”.

Houve um aumento expressivo da implementação de tarifa zero nos últimos anos, não somente porque aumentou a consciência pública sobre o direito à cidade. Outra mudança ainda mais substancial na curva da implementação se deu ao longo da pandemia, pois no período de isolamento o uso do transporte diminuiu muito, o pagamento por passageiro – sistema tarifário  mais usual — passou  a ser deficitário e os empresários do setor buscaram sensibilizar prefeitos, que logo passaram a achar outras saídas.

Em Vargem Grande Paulista (SP) as empresas locais isentam-se de pagar vale transporte a seus funcionários e transferem tais recursos para um fundo de mobilidade da prefeitura. Em Maricá (RJ), que aplicou a medida já no pós-junho, os recursos vêm de royalties de petróleo. Já em Caucaia, segunda maior cidade do Ceará, o Programa “Bora de Graça” utiliza 3% recursos do orçamento regular da prefeitura e já há estudos para estender a medida para cidades da região metropolitana.

Seja por boa vontade política, oportunismo ou só arranjo com setores empresariais, o fato é que a tarifa zero saiu da zona das utopias e ganhou o território do pragmatismo justificado. 

Alguns benefícios são bastante conhecidos e esperados. Garantir mobilidade aumenta o uso do transporte coletivo. Em Caucaia (CE), por exemplo, a demanda passou de cerca de 500 mil passageiros para mais de 2 milhões mensais. Com isso, há uma melhora nas condições de tráfego desafogando congestionamentos, redução considerável na emissão de poluentes e, ainda, em acidentes diários.  Em suma, é um elemento estruturante para a superação do rodoviarismo e para a transição energética.

O mais interessante é perceber que, longe de ser uma medida custosa sem retorno (como costumam ser interpretadas as utopias), a tarifa zero tem efeitos multiplicadores diversos na economia local: primeiro, porque representa uma redução significativa no custo de vida das famílias.  O Mapa da Desigualdade 2022, realizado pela Rede Nossa São Paulo, mostra que o transporte está entre os itens de maior impacto  nos  orçamentos familiares – atrás somente de habitação, na frente até da alimentação. Segundo, porque garantir o acesso livre à cidade tem efeitos positivos para o consumo no comércio e serviços locais. Esta pode ser uma saída promissora para reabilitação de áreas centrais, talvez mais eficiente do que as conhecidas e discutíveis políticas de embelezamento e “revitalização”.

Outro impacto fundamental é na participação política e pode ser percebido nas eleições presidenciais de 2022. No primeiro turno, foram 136 municípios, um estado e cerca de 40 milhões de beneficiados. No segundo turno, pelo menos 393 cidades e oito estados aboliram as cobranças no transporte municipal e intermunicipal, beneficiando mais de 100 milhões de pessoas. Porto Alegre foi uma das cidades que aderiram ao passe livre apenas no domingo do segundo turno. No primeiro turno foram cerca de 5,6 mil viagens e 303 mil passageiros transportados. Para o segundo, foram aproximadamente 6 mil viagens, com estimativa de transportar 360 mil, mas capacidade para 500 mil passageiros. Comparado a um domingo típico, o incremento representou cerca de 50%. Na Grande Recife (PE), a demanda aumentou 115% em relação aos domingos comuns e 59% na comparação com o primeiro turno. Em Belo Horizonte (MG), o aumento foi de 60% e 23% nas mesmas bases de comparação, conforme balanços divulgados à época.

É fato, trata-se de uma pauta que tem futuro, as construções continuam.  Nos debates da equipe de transição de Lula apareceu a ideia de um “SUS da mobilidade”. Erundina coleta assinaturas para apresentar ‘PEC da Tarifa Zero’. Aparecem formulações cada vez mais transversais: coalizão triplo zero – zero tarifa, zero poluentes, zero mortes no trânsito.

Mobilidade urbana e mobilidade social

O fenômeno junho certamente ainda  renderá muitos debates, nosso papel aqui foi tão somente desfazer algumas leituras caricatas, mas sobretudo evidenciar: a pauta da tarifa zero deixa ver como “utopia” pode ser uma categoria acusatória proferida em momentos nos quais ainda não se tem disposição nem horizonte o suficiente para lidar com os potenciais de uma ideia.

A tarifa zero deixou de ser o ponto mais utópico de junho para se tornar uma política matricial e estruturante de outros direitos. Torna-se mais claro que a mobilidade urbana é condição necessária da mobilidade social, ou mais, da ampliação democrática. A mobilidade urbana garante melhorias diversas nas condições de vida cotidiana, pode diminuir os abismos entre centro e periferia.

Chega a ser óbvio: serviços públicos não ocorrem num etéreo de abstração, mas num espaço urbano em que suas sedes se inscrevem. O mesmo para a participação em processos decisórios ou ainda para o gozo do tempo livre. Todo bem estar social está ancorado na capacidade de acessar os espaços e participar dos lugares onde tais atividades se desenvolvem.  Se pensarmos nas populações cujas espoliações se sobrepõem – pensemos numa mulher negra periférica, subempregada e mãe –, a política de mobilidade universal chega a contribuir como reparação histórica. Na expressão de Lúcio Gregori, a tarifa zero está entre as pautas que baralham reforma e revolução. As análises políticas precisam chegar nessa escala do espaço urbano vivido.

Paolo Colosso é urbanista e filósofo, professor na universidade federal de santa catarina, no programa de pós-graduação em Filosofia  e no PPG de Arquitetura e urbanismo e faz parte da Coordenação Nacional da Rede BrCidades.

Ísis Detomi é Mestranda em Arquitetura e Urbanismo na Universidade Federal de Santa Catarina (PósARQ-UFSC). Pós lato sensu da Escola da Cidade São Paulo, em Mobilidade e Cidade Contemporânea. Pesquisadora pelo Núcleo de Estudos Sociopolíticos, vinculado à PUC Minas (Nesp/PUC Minas).

Gabriela Mallmann é graduada em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade Federal de Santa Catarina. Bolsista do Programa de Educação Tutorial de Arquitetura e Urbanismo (PETARQ/UFSC) de 2018 a 2019.

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