Dos 218 projetos de lei apresentados no Congresso Nacional para doenças raras entre 2000 e 2022, 12 tratam exclusivamente de fibrose cística. Pode-se afirmar que o país obteve avanços em relação a essa patologia, em um modelo que pode servir para outras enfermidades não convencionais.
Desde 2010, a fibrose cística (FC) está entre as doenças raras identificadas por meio do teste do pezinho, iniciando assim, a fase um da cadeia da política pública: o diagnóstico. O Protocolo Clínico e Diretrizes Terapêuticas (PCDT) da doença, atualizado em 2022, estabelece critérios para o diagnóstico e orientações para o tratamento; mecanismo de controle clínico; acompanhamento e verificação dos resultados terapêuticos.
Nesse modelo, há fatores importantes. Os centros de referência para o tratamento de fibrose cística são essenciais para os pacientes. A base de dados com informações demográficas, diagnósticos e evolução da terapia também colabora para um melhor cuidado dessas pessoas. E, com o apoio da iniciativa privada, 80% dos portadores de fibrose já foram testados geneticamente para expandir estudos clínicos.
O relatório Protocolos Clínicos e Diretrizes Terapêuticas, da Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no Sistema Único de Saúde (Conitec), aponta que, entre as doenças raras, a fibrose cística é a mais prevalente. Atualmente, há 6 mil indivíduos cadastrados no Registro Brasileiro de Fibrose Cística (Rebrafc). O levantamento indica ainda que o número de novos diagnósticos tem oscilado entre 250 e 300 casos por ano.
"Preciso lutar"
A fibrose cística é uma doença genética com impacto significativo na qualidade e na expectativa de vida dos pacientes. Laura Sofia Mendes, portadora da enfermidade, contou como foi crescer em meio à rotina de internações. Ao compartilhar um relato no CB Talks, ela contou que, apesar de ter sido diagnosticada quando tinha 1 ano e 8 meses, só tomou consciência de sua situação muito tempo depois.
"Quando eu entendi que tinha a doença, estava com uns 10 anos de idade. E isso aconteceu porque eu ficava internada nos hospitais e tomava muito remédio. Eu já estava cansada", revelou. De acordo Laura Sofia, a expectativa de vida dela era que não passaria de 18 anos, idade que tem hoje. "Devido a isso, durante meu crescimento, tive de fazer muitas inalações, fisioterapias e tomar vários medicamentos. Uma consequência disso foi a limitação da vida social", explicou.
Laura Sofia contou que é grata aos cuidados recebidos e destacou que a tecnologia melhorou a qualidade de vida dela. "Ao longo dos anos, minha doença piorou, mas, hoje, tenho muito a agradecer aos meus médicos e à minha mãe, que sempre cuidaram bem de mim. E, graças às inovações no tratamento da enfermidade, eu consigo sair e fazer as coisas que eu gosto. Vou a shows, estudo e tenho uma vida social", comemorou.
A jovem também pratica atividades físicas, algo que não poderia fazer até alguns anos atrás. "Eu posso fazer academia, jogar basquete, entre outras atividades. Então, basicamente, minha vida é normal, mas preciso lutar. Além disso, não preciso mais tomar 10 comprimidos de remédios. Tomo apenas seis", explicou. Laura Sofia exortou, ainda, a todos que têm a mesma condição a não pararem de lutar e enfatizou a importância da edição do debate do Correio ao falar de doenças raras.
"Uma odisseia"
Diagnosticado com esclerose múltipla em 2011, já adulto, Gustavo San Martin, contou como todo processo de tratamento de uma doença rara é complicado. "A jornada é uma odisseia. O diagnóstico é difícil, fazer o matriciamento, acompanhar o paciente, o impacto na família, muitas vezes, a mãe atuando como cuidadora… Precisamos olhar, inclusive, para a falta de regulamentação da profissão de cuidador", destacou. San Martin lembrou que 68% das pessoas com doenças raras empregadas no momento do diagnóstico, estão, atualmente, desempregadas. "É toda uma cadeia afetada" desabafou o também fundador da Associação Crônicos do Dia a Dia (CDD) e da Federação Brasileira das Associações de Doenças Raras (Febrararas).
San Martin ressaltou que ainda há entraves para o acesso a terapias assistenciais. "Um dos maiores desafios das doenças raras é não ter tratamento. Mas, com todas as pesquisas clínicas, a gente tem alguns. Esse tratamento precisa ser incorporado no Sistema Único de Saúde (SUS), no sistema privado. Porém, a gente vem subvertendo uma lógica de saúde vs economia, que não deveria acontecer. A gente está olhando para o custo, sem discutir, primariamente, o impacto disso na vida das pessoas", afirmou.
De acordo com ele, há um entrave na incorporação de medicamentos na Conitec, em grande parte, devido ao custo. "É óbvio que eu prezo pelo equilíbrio e pela sustentabilidade do sistema, mas se o remédio é bom, eficaz, está dentro do que eu aceitei pagar, não tem porque abrir espaço para negociar mais enquanto a doença está avançando. Eu quero o meu remédio. Se eu pensar que eu poderia já estar tomando ele talvez um ano atrás, o que eu perdi até esse um ano?", desabafou o fundador da Febrararas.
Com o remédio incorporado ao SUS, o desafio continua para que todos que necessitam o recebam. No mês passado, o Trikafta foi incorporado ao SUS para tratar a fibrose cística. O Ministério da Saúde possui até 180 dias para disponibilizá-lo a todos pacientes da rede pública. No entanto, San Martin deixou dúvidas sobre a disponibilidade. "Será que ele não vai demorar 440 dias para chegar? Tem remédio para câncer de pulmão que está há mais de 3 mil dias sem chegar", disse. E acrescentou: "Para mim, o acesso é quando eu abro minha geladeira, eu pego a minha injeção e tomo três vezes por semana."
* Fernanda Strickland, Mayara Souto, Luis Fernando Souza
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