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As Big Techs, a Lava Jato e a mídia brasileira, por Felipe Costa

As Big Techs, a Lava Jato e a mídia brasileira: O assombro dos resultados falsos e dos argumentos cínicos.

Por Felipe A. P. L. Costa [*].

1. ERROS E MARGENS DE ERRO.

No âmbito da nossa conversa sobre pesquisa científica, dois tipos de erros são motivos de assombro e preocupação. O primeiro deles (erro de tipo I), e que é também o mais grave, é aceitar como verdadeiro um resultado que de fato é falso. O segundo (tipo II) é rejeitar como falso um resultado que de fato é verdadeiro [1].

Nas palavras de Siegel (1981, p. 10):

“Há dois tipos de erro que podem ser cometidos ao formularmos uma decisão sobre H0. O primeiro, chamado erro de tipo I, consiste em rejeitar H0 quando ela é verdadeira. O segundo, erro de tipo II, consiste em aceitar H0 quando ela é falsa. A probabilidade de cometer um erro de tipo I é denotada por α. Quanto maior for α, mais provável será rejeitar H0 falsamente, isto é, maior será a probabilidade de um erro de tipo I [2]. O erro de tipo II é usualmente denotado por β.”

O ideal é que a chance de ocorrência de um ou de outro tipo de erro seja mantida no mais baixo nível possível, recomendação que nem sempre pode ser plenamente atendida. Conforme anotou Spiegel (1971, p. 277):

“Para que quaisquer testes de hipóteses ou regras de decisão sejam bons, eles devem ser planejados de modo que os erros de decisão sejam reduzidos ao mínimo. Isso não é tarefa simples, porquanto para um dado tamanho de amostra, a tentativa de diminuir um certo tipo de erro é acompanhada, em geral, pelo acréscimo de outro tipo. Na prática, um tipo de erro pode ser mais importante do que outro, de modo que se deve procurar uma acomodação que favoreça a limitação do erro mais sério. O único caminho para a redução de ambos os tipos de erros consiste em aumentar o tamanho da amostra, o que pode ou não ser possível.”

Pois é. Seja pela urgência da situação [3], seja por algum tipo de esgotamento (tempo, dinheiro, pessoal etc.), nem sempre é possível (ou mesmo desejável) aumentar o tamanho da amostra. Faz-se necessário, portanto, estabelecer margens de segurança (leia-se: margens aceitáveis de erro), sobretudo quando o pesquisador pretende fazer extrapolações a partir dos resultados obtidos com uma determinada amostra.

2. TIPOS DE VARIÁVEIS.

Antes de prosseguir, cabe esclarecer o significado de alguns termos que estão a ser usados, a começar pelo termo variável.

Toda e qualquer característica que esteja presente em duas ou mais entidades comparáveis, manifestando-se de modo desigual em ao menos uma ou algumas delas, pode ser rotulada de variável. A lista de exemplos é gigantesca – e.g., o brilho de estelas distantes, a pressão atmosférica, a concentração de NaCl na água do mar, a densidade demográfica das cidades, o número de casamentos ao longo do ano, o percentual da população adulta que não sabe ler e por aí afora.

Vamos reportar aqui três tipos de variáveis: (1) as mensuráveis; (2) as classificatórias; e (3) as nominais (referidas também como atributos).

Nas palavras de Sokal & Rohlf (1981, p. 11-2; tradução livre):

“Variáveis mensuráveis são todas aquelas cujos diferentes estados podem ser expressos de um modo numericamente ordenado. […] Algumas variáveis [ditas classificatórias] não podem ser mensuradas, mas podem ao menos ser ordenadas ou listadas pela sua magnitude. […] Variáveis que não podem ser mensuradas, mas devem ser expressas qualitativamente, são chamadas variáveis qualitativas ou atributos.”

Variáveis do primeiro tipo são subdivididas em contínuas e descontínuas [4]. As primeiras são variáveis mensuráveis que podem assumir qualquer valor entre dois números previamente fixados. Peso (massa) e altura são dois exemplos. Em uma escala de 0 a 150 kg, digamos, a massa corpórea dos alunos em uma sala de aula podem assumir qualquer valor em meio a infinitos valores – e.g., 45,2 kg, 47,815, 50,5, 52,14 e assim por diante. Os valores de uma variável contínua são obtidos por meio de medições.

As variáveis descontínuas (chamadas também de discretas ou merísticas), ao contrário das primeiras, só podem assumir valores inteiros. Exemplo: O número de sementes de um fruto, o número de abelhas que formam uma colmeia e o número de ovos que o granjeiro recolhe diariamente. Uma melancia pode ter dezenas de sementes dentro dela, mas o número exato será sempre um número inteiro – e.g., 215, 216 ou 217 sementes, nunca 215,2, 215,8 ou 217,43. Os valores de uma variável discreta são obtidos por meio de contagens.

Os outros dois tipos de variáveis (classificatórias e qualitativas) não são mensuráveis, ainda que se possa associar a eles algum índice numérico. Vejamos alguns exemplos.

Variáveis classificatórias: a ordem de emergência das flores de uma planta (dia 1, 2 etc.) ou a ordem de dominância dentro de um galinheiro (a dominante bica todas as outras; a subdominante bica todas as outras, exceto a dominante; a terceira na hierarquia bica todas as demais, exceto as duas primeiras; e assim por diante). Exemplos de variáveis qualitativas (referidas também como atributos): a classificação das galinhas de uma granja de acordo com a cor das penas, a distinção entre machos e fêmeas ou a distinção entre galinhas sadias e doentes.

Voltemos agora à nossa conversa sobre erros.

3. TESTE DE GRAVIDEZ.

Veja o caso do teste de gravidez. Uma mulher que tenha feito o teste receberá um entre dois resultados possíveis: Positivo ou Negativo. O primeiro resultado deve ser lido como Grávida e o segundo como Não Grávida.

Ocorre que o teste não é perfeito e os resultados, portanto, não são 100% seguros – i.e., o percentual de acerto é inferior a 100%. Trocando em miúdos, o teste não é 100% exato nem 100% preciso (ver a ilustração que acompanha este artigo). O que significa isso? Significa que todo e qualquer resultado (positivo ou negativo) pode se revelar verdadeiro ou falso.

A rigor, portanto, há dois pares de atributos, de sorte que o univeso dos resultados possíveis tem quatro combinações. São elas: (1) Positivo e Verdadeiro; (2) Positivo, mas Falso; (3) Negativo e Verdadeiro; ou (4) Negativo, mas Falso.

Os usuários anseiam tão somente por resultados verdadeiros, sejam eles positivos ou negativos. Os técnicos que desenvolvem esses testes (seja o de gravidez, seja algum outro teste parecido) sabem disso e o trabalho deles visa justamente minimizar a ocorrência de resultados falsos (leia-se: o falso positivo e o falso negativo) [5].

4. CODA.

Errar é humano”, diz o ditado. De mal-entendidos acidentais (e.g., erros de digitação) a erros conceituais, os tropeços possíveis são tantos e tão variados que parecem inevitáveis. Por que isso? Porque errar é fácil. E é fácil porque há sempre (muito) mais atalhos a nos levar ao erro do que ao acerto.

Ocorre que, enquanto a ciência tem um sistema próprio de combate ao erro, outras áreas do empreendimento humano estão parcial ou completamente desarmadas. Assim, basta sair à rua e o assombro logo se converte em pesadelo – e.g., gente a passar fome, pedestres atropelados na calçada e bueiros a explodir. Muitas vezes, claro, não é necessário sair de casa – as Big Techs, por exemplo, elas próprias um pesadelo, trazem os erros e as mentiras até a gente.

Na ausência de um sistema único e universal de combate ao erro, a pergunta que se impõe é: Será que, se o senso crítico da maioria da população (brasileira e mundial) fosse minimamente desenvolvido, nós ainda estaríamos a conviver com todas essas monstruosidades?

Não sei a resposta. Mas posso adiantar o seguinte: A situação é preocupante. E é preocupante porque o senso crítico da gente (a exemplo de outros atributos cognitivos) só se desenvolve em um contexto de interação e discussão social, uma prática que parece ter sido banida da vida moderna.

Sim. Com exceção talvez dos céticos criteriosos (Sócrates [~470-399 aC] parece ter sido um deles), quem hoje está habituado a defender os seus pontos de vista com base em argumentos, digamos, lógicos, racionais e honestos [6]?

Com a palavra as Big Techs, as petroleiras, a indústria do tabaco, a Lava Jato e os comentaristas de economia e política que infestam a mídia brasileira…

*

NOTAS.

[*] O presente artigo foi extraído e adaptado do livro A força do conhecimento & outros ensaios: Um convite à ciência (em processo de finalização). Outros trechos da obra já foram anteriormente divulgados neste Jornal GGN – ver os artigos Livros, lentes & afins; Por que a Terra é esférica?; Revolução Agrícola, a mãe de todas as revoluções; O que é cultural, afinal?; Subindo uma rampa em espiral; Quem quer ser um cientista?; Finda a lenha, eis o carvão: Como foi mesmo que entramos nessa enrascada?; Do que é feito o Universo?; A terceira via: Algumas notas sobre o método científico; As origens da política; Um mapa do Brasil. I. Roraima a inchar, Piauí a murchar?; Combatendo notícias falsas. I. Por que não existem fotos da Via Láctea vista de fora?; Um mapa do Brasil. II. Onde estão os brasileiros?; As cores da Terra. I. Biomas de água doce e arquitetura animal; As cores da Terra. II. Biomas marinhos e a produção primária global; Nervos, cérebros e comportamento. I. Ecologia sensorial e a mente humana; Nervos, cérebros e comportamento. II. Podemos aprender com os nossos erros; O pote de ouro, a corrida maluca e a facada pelas costas: Bem-vindo à arena científica; Ciência, tecnologia, negócios; É a Inglaterra de fato um país civilizado?; e A escrita diarística e o fumo de um corpo que arde.

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[1] Cometemos erros com bastante frequência. Bem mais do que gostaríamos e muito mais do que costumamos admitir. Não surpreende. Afinal, é bem mais fácil errar do que acertar. Ter consciência disso já é meio caminhado andado, sobretudo para quem deve evitar erros graves e grosseiros.

[2] A margem aceitável de erro de tipo I, por convenção, não ultrapassa os 5% – para detalhes, ver Sokal & Rohlf (1981); em port., Berquó et al. (1981).

[3] Como no filme Óleo de Lorenzo (1992), ver nota 132 (Cap. 7).

[4] Variáveis contínuas, como altura e peso, variam de modo contínuo, o que significa dizer que podem ser apropriadamente representadas por uma reta graduada, a exemplo do conjunto dos números reais. Já as variáveis discretas variam aos saltos (e.g., número de filhos), o que significa dizer que são apropriadamente representadas pelo conjunto dos números naturais, {0, 1, 2, 3,… +∞}, ou pelo conjunto dos números inteiros, {–∞… –3, –2, –1, 0, 1, 2, 3,… +∞}.

[5] Não custa ressaltar: O falso positivo é o resultado que diz que a mulher está grávida, quando ela de fato não está. O falso negativo diz que a mulher não está grávida, quando ela de fato está.

[6] Essa tripla qualificação significa não só evitar argumentos cínicos ou sabidamente falaciosos, mas também pressupor que algum tipo de erro – inicialmente desconhecido – possa estar embutido em algum dos argumentos utilizados.

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referências citadas.

++ Berquó, ES & mais 2. 1981. Bioestatística. SP, EPU.

++ Reeve, DR & Crozier, A. 1980. Quantitative analysis of plant hormones. In: J MacMillan, ed. Hormonal regulation of development I. Berlim, Springer.

++ Siegel, S. 1981 [1956]. Estatística não-paramétrica para as ciências do comportamento. sp, McGraw-Hill.

++ Sokal, RR & Rohlf, FJ. 1981. Biometry, 2nd ed. NY, Freeman.

++ Spiegel, MR. 1971 [1961]. Estatística. SP, McGraw-Hill.

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O texto não representa necessariamente a opinião do Jornal GGN. Concorda ou tem ponto de vista diferente? Mande seu artigo para [email protected]. A publicação do artigo dependerá de aprovação da redação GGN.

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