Cape Verde
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Vencer sem convencer

Por: Germano Almeida

Um certo professor da faculdade de Direito de Lisboa, se lhe fosse dado acesso ao acórdão condenatório do advogado Amadeu Oliveira, certamente que diria dele ter coisas boas e também coisas originais. E concluiria que as coisas originais não são boas. E as boas não são originais.

Vejamos então uma primeira das muitas originalidades constantes desse acórdão: atribuir à Assembleia Nacional o poder de emitir despachos de pronúncia. Citando o acórdão: …”perante a imputação a um Deputado de indícios da prática de um crime, a Lei confere à Assembleia Nacional a faculdade de analisar a questão, verificar se ao caso existe a possibilidade de aplicação da medida de coação pessoal prisão preventiva, de verificar as razões que justificam ou não a manutenção dessa imunidade do respetivo parlamentar e, finalmente, deliberará se autoriza ou não a detenção do Deputado, deliberação essa que é fundamentada”. 

Continuando: “Desde que a Assembleia Nacional entender por justificadas as razões invocadas, pode autorizar a detenção de um Deputado, independentemente de estarmos ou não perante uma situação de flagrante delito ou de fora de flagrante delito – logo para que a AN autorize a detenção do Deputado não é necessário que tenha havido, previamente, um despacho de pronúncia, pois, nem a Constituição da República e nem o Estatuto dos Deputados estabelecem um prévio despacho de pronúncia como condição para que a Assembleia Nacional autorize a detenção de um Deputado”.

A gente lê, e a primeira coisa que sente é ser-se esmagado pelo terror, será que o que esses juízes dizem é a única verdade, todos eles já entendem esse pré-julgamento que é o despacho de pronuncia dessa forma tão perversa? Mas felizmente que não, logo depois vem a compreensão: Não, não é assim, isso que foi escrito é direito exclusivo dos magistrados escolhidos para julgar Amadeu Oliveira, é invenção exclusiva para o manter na cadeia!

Em princípio nós outros não temos que recear essa escabrosa manobra inventiva, pois que em verdade não se trata de uma interpretação, mas sim de uma invenção, o que temos é que fugir dos passos trilhados pelo Amadeu Oliveira, não repetir as suas andanças. E sobretudo fugir a sete pés do Tribunal da Relação de Barlavento.

Mas, bem vistas as coisas, o acórdão não podia ter decretado de outro modo. O único erro de palmatória foi dizer que sentenciava em nome do povo de Cabo Verde, na realidade o coitado do povo nada tem a ver com essas tropelias que começaram e continuam a ser cometidas nesse processo. Por exemplo, a justificação pelo desrespeito da exigência legal do juiz natural, certamente merecerá figurar numa antologia dos mais longos disparates judiciais, pois são seis páginas de incongruentes mistificações que concluem que a questão suscitada pelo arguido é destituída de base legal e sem dignidade.

Pudera! Todo esse edifício processual laboriosamente construído exclusivamente para lixar o Amadeu Oliveira, sequer chega a ter pés de barros. É antes uma construção na areia que nenhuma hermenêutica tem suficiência para salvar, e o mínimo solavanco o desmorona com estrondo.

Porém, a culpa é dos magistrados que em conjunto atuaram neste processo. Não agiram como juristas, com a missão de cumprir a lei e fazer justiça. Preferiram todos eles agir como polícias, talvez a famosa polícia política, cumprir ordens a qualquer custo, como disse o presidente da Assembleia Nacional, “conter” o Amadeu.  E nesse afã de conter o Amadeu, ninguém se preocupou com os princípios, os preceitos legais, as normas ínsitas na formulação legal, enfim, com aquilo que são chamados a arbitrar, a saber, o princípio e o primado do direito para fazer justiça. E por isso se viram obrigados a inventar sobre a hora, a criar interpretações que não lembram ao diabo, como essa de conceber e parir um despacho de pronuncia filho do Parlamento.

É em vão que se percorre as 90 páginas do acórdão em busca de um único facto capaz de fazer lembrar a eventualidade de um ataque ao chamado estado de direito democrático. De tal modo que quem queira insistir em encontrar algum senso (não tem que ser bom senso!) nessas 90 páginas, terá de regressar aos ensinamentos da igreja, lembrar o catecismo e aceitar que afinal se pode pecar somente por pensamentos e palavras. As obras são dispensáveis. E assim entender as palavras do procurador quando acusou o Amadeu de atentado contra o estado democrático de direito. Não contra o Estado de Cabo Verde, entidade concreta existente, Nação já antiga e Estado desde 5 de julho de 1975. Não, esse não conta.

O que realmente conta é o abstrato estado de direito democrático que existe na cabeça de cada um de nós e que ficará ofendido na medida da vontade de cada um de nós e conforme as nossas conveniências. Foi esse Estado que o Amadeu ofendeu com pensamentos e palavras. Porque não se lhe atribui um único facto, por ligeiro que fosse, capaz de configurar essa ofensa. Bem, na verdade o acórdão arrolou como facto a sua saída do país na companhia do Arlindo Teixeira que qualificou como um rapto, ainda que não violento. E o acórdão jura que cometeu esse rapto na qualidade de deputado. No entanto, nem nesse caso se poderá dizer que ele passou pau à Polícia, porque o que é evidente aqui é um caso de desleixo de alguém responsável e a quem as autoridades constituídas se calhar não querem tocar.

É pena o Amadeu não poder contar com o recurso a um tribunal com juízes isentos, ele só poderia beneficiar de isenção e imparcialidade se fosse possível importar juízes estrangeiros para o julgar. É que esse acórdão é tão mauzinho que seguramente ele seria logo anulado. D. Pedro I de Portugal inventou os “juízes de fora”, porém nesta aldeia nacional em que todos se conhecem, não há gente desta. 

O Irão está a julgar um homem que dizem incurso em pena de morte. O seu crime? Ser inimigo de Deus, estar em guerra contra Deus. A gente lê isso e espanta-se, Mas essa gente é maluca, matar um homem por ser inimigo de Deus! Mas vendo bem, não é muito diferente dessa acusação ao Amadeu de atentado contra o estado de direito democrático. O Irão é um Estado teocrático, ainda que ninguém o veja, Deus está ali quase fisicamente presente e, portanto, pode ter inimigos que o guerreiam.

Cabo Verde não, somos um Estado laico e então esse novo Deus criado na figura de Estado de Direito Democrático e que muito se assemelha ao Ser Supremo criado por Robespierre, parece mais um pretexto para condenar Amadeu Oliveira a sete anos de prisão.

Lembro-me das palavras do filósofo basco Miguel Unamuno dirigindo-se aos franquistas na guerra de Espanha: Vencereis, mas não convencereis; porque para convencer é preciso ter o que vos falta: o direito e a razão na luta! Não chega debitar sentenças em nome do povo para se fazer justiça. 

Publicada na edição semanal do jornal A NAÇÃO, nº 797, de 08 de Dezembro de 2022

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