Portugal
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O IUC despreza o cidadão comum e a ação climática

No passado dia 10 de outubro, a Proposta de Lei do Orçamento do Estado para 2024 desdobrou-se perante a Assembleia da República com destaque para a recalibração do Imposto Único de Circulação (IUC). A manobra fiscal tem suscitado grande atenção pública e legislativa, designadamente devido ao aumento substancial da taxa sobre veículos fabricados antes de 2007.

Na sua formulação atual, a proposta projeta a sua sombra financeira sobre 3 milhões de automóveis e meio milhão de motociclos, prevendo-se que gere uma receita substancial de 84 milhões de euros, contribuindo substancialmente para uma receita total prevista de 98 milhões de euros. Em certos casos, o aumento da taxa a pagar pode ultrapassar os 1000% nos próximos anos.

No fundo, a medida insere-se no âmbito da transição energética nacional, uma vez que a lógica subjacente a esta recalibração fiscal visa incentivar o abandono dos veículos com motor de combustão interna, promovendo a utilização de transportes públicos ou a aquisição de um veículo elétrico com muito menor impacto ambiental.

De facto, o imposto pode constituir um instrumento eficaz para reduzir significativamente as emissões de CO2 e assim combater as alterações climáticas. A equação é simples: com menos veículos alimentados a combustíveis fósseis na estrada, menos emissões de gases com efeito de estufa (GEE) serão emitidas.

Esta reorientação estratégica reflecte os objectivos mais amplos da proposta de orçamento, que, de acordo com o Governo, se articula em torno do trinómio, mais rendimentos, mais investimento e melhor futuro. Do mesmo modo, o IUC pode ser classificado sob uma lente tripla: como um instrumento de desconsideração, de pretensão e de imputação.

Para que um imposto do género produza verdadeiramente os resultados pretendidos, é imperativo que seja feita uma consideração judiciosa do contexto infraestrutural prevalecente, tendo em conta os princípios de uma transição social justa. Contudo, neste domínio, existe uma lacuna notável na compreensão das realidades do nosso país por parte do Governo.

À exceção das áreas metropolitanas de Lisboa e Porto, Portugal debate-se com uma rede de transportes públicos subdesenvolvida e inadequada face ao nível europeu. A disparidade de acessibilidade é evidente para quem vive no interior do país ou nas ilhas, onde os veículos pessoais não são apenas uma questão de conveniência, mas uma necessidade.

Priorizar o transporte público não tem sido uma marca das administrações anteriores e o atual Governo parece seguir o mesmo caminho. Há regiões em Portugal onde os caminhos-de-ferro foram abandonados por falta de investimento ao longo dos anos e os autocarros são escassos ou apresentam horários primitivos. No entanto, o Governo português decidiu ignorar esta realidade e isso fica evidente quando exorta o cidadão, de uma forma algo distanciada, a investir em veículos eléctricos.

Para além do mais, este apelo à transição vem acompanhado de pouca clareza no que diz respeito aos incentivos e às orientações práticas necessárias para tal. Embora Medina tenha prometido incentivos para o abate de veículos convencionais e para a adoção de alternativas eléctricas, os detalhes continuam por definir.

Ora dada a celeridade da subida das tarifas do IUC, seria razoável esperar que tais elementos adicionais tivessem sido minuciosamente definidos de antemão, ao invés de serem deixados para segundo plano. É precisamente por isso que esta medida se revela mais pretensiosa do que prática. Com incentivos pouco claros, o seu objetivo aparenta ser não tanto o de reduzir substancialmente as emissões de GEE, mas mais o de polir a imagem e as ações públicas do Governo.

Portugal, tal como muitas outras nações, está a ser alvo de um escrutínio intensivo no que diz respeito à sua dedicação à abordagem das questões ambientais e ao combate às alterações climáticas, aliás, alguns membros do Governo têm sido recentemente visados de forma muito pública a este respeito. Esta viragem abrupta do IUC delineia-se como uma forma de postura política concebida para criar a impressão de um forte empenhamento e responsabilidade ambiental, mesmo que tal não se traduza numa abordagem abrangente e holística face às alterações climáticas.

Quando examinamos as medidas ambientais delineadas na proposta de orçamento, tal torna-se evidente, verificando-se uma ausência de ferramentas substanciais capazes de impulsionar as mudanças sociais necessárias para combater a crise climática. E é aqui que se verifica uma clara manobra de imputação: em vez de adotar uma abordagem sistémica, o Governo transfere o ónus da responsabilidade climática para os condutores.

Ao impor um aumento significativo do IUC sobre os veículos, o Governo atribui indiretamente uma parte substancial da responsabilidade pelas alterações climáticas e pelas emissões aos seus cidadãos individuais. Esta mudança serve para desviar a atenção do papel fundamental do Governo na moldagem da crise climática e afastar a necessidade de mudanças mais urgentes.

Se, por um lado, é importante reconhecer que as ações individuais contribuem para as alterações climáticas e que é imperativo abandonar os veículos com motor de combustão interna, por outro, há que ver que o impacto dessas ações não passa de uma gota de água no oceano.

Desde 1988, um número restrito de empresas tem sido responsável por 71% das emissões globais de GEE. Os governos, nas suas relações com estas entidades orientadas para o lucro desmedido, têm uma participação considerável nesta equação, uma vez que sucumbem frequentemente às pressões exercidas por estes gigantes empresariais.

Se a nossa intenção genuína é reduzir emissões, são estas entidades que devem ocupar o primeiro lugar na atenção governamental e na reforma política. Enquanto tal não for abordado, o aumento de impostos apenas continuará a sobrecarregar o cidadão comum e tinta verde continuará a cair sobre aqueles que nos governam.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico