Cape Verde
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Proteger e valorizar o português como “património cultural de todos nós”

Por: Mircéa Delgado

A NAÇÃO formulou à deputada Mircéa Delgado um questionário sobre as razões do seu projecto lei relativo à classificação da língua portuguesa como património imaterial de Cabo Verde. O artigo que se segue procura responder às nossas questões, à luz de tudo o que já foi dito sobre o assunto, nomeadamente, pelo ministro da Cultura, Abraão Vicente, e outros intervenientes.

“Começo por dizer que a Constituição é a lei mãe de todas as leis da República.

A Constituição de Cabo Verde estrutura-se sobre dois pilares fundamentais:  O funcionamento do Estado de Direito Democrático e a defesa e valorização do nosso património cultural que é aquilo que nos define como Nação.

A nossa constituição dispõe no seu artigo 7º al. i), o seguinte: São tarefas fundamentais do Estado preservar, valorizar e promover a língua materna e a cultura cabo-verdianas.

Na mesma linha, a Constituição no art.º 79, n.1, estatui que “Todos têm o direito à fruição e criação cultural, bem como o dever”, sublinho, “TODOS têm o dever de preservar, defender e valorizar o património cultural.”

Isto quer dizer que todo o cabo-verdiano e todas as instituições do país têm o dever de preservar, defender e valorizar o património cultural, mormente os deputados como representantes da Nação, sobretudo quando parte importante desse património se encontra num processo de desgaste acelerado, como é o caso da língua portuguesa em Cabo Verde.

Na nossa Constituição, no seu artigo 204, cuja a epigrafe é competência legislativa, não há nada que diga que no exercício de funções legislativas o Governo tenha, no que diz respeito à Cultura, COMPETÊNCIA LEGISLATIVA EXCLUSIVA, o que quer dizer que, salvo melhor opinião, a Assembleia Nacional não está impedida de legislar sobre essa matéria.

Assim, na qualidade de deputada da Nação, apercebendo-me  de ataques claros ou muitas vezes velados de falsos nacionalistas à língua portuguesa, mas também consciente  do desgaste e da desvalorização preocupantes a que está submetido esse bem cultural fundamental da nação, e face à passividade, inoperância, incompreensão ou até mesmo à resistência na aplicação da lei de proteção do património em vigor no país por parte de instituições com competência na matéria, dizia, é natural que os deputados da Nação, em nome do povo que representam, ajam ou legislem no sentido da salvaguarda efetiva do património cultural de todos nós, afinal, a única razão e o fundamento da nossa existência como povo.

É isso que justifica a apresentação do projeto de lei que visa classificar a língua portuguesa como Património Cultural Imaterial de Cabo Verde.

No parecer emitido pela Direção do Património Imaterial ficou claro que o Instituto do Património Cultural e o Ministério da Cultura não reconhecem a língua portuguesa como Património Cultural Imaterial de Cabo Verde. 

Segundo o referido parecer «Não há registo de línguas não nativas classificadas como patrimónios culturais nacionais» (…)

Não é necessário argumentar muito para provar que os autores do parecer em referência confundem o conceito de língua nativa com o de língua materna, levando os incautos a pensar que o crioulo é a única língua materna dos cabo-verdianos por ser a mais utilizada pelo falante nativo. Nada mais falso!

É verdade que o conceito de falante nativo está associado ao de língua materna, mas a língua materna não é, necessariamente, apenas aquela utilizada pelo falante nativo.

A língua materna é o primeiro idioma que um indivíduo aprende.

O povo cabo-verdiano como nação diasporizada que é, tem mais do que uma língua materna.

A língua portuguesa é a língua materna de milhares de cabo-verdianos espalhados pelo mundo, a começar por Portugal. Só em Portugal estão mais de trezentos mil cabo-verdianos a viver nesse país. Em Angola, Moçambique, Brasil, Guiné-Bissau, São Tomé e Príncipe e Timor Leste contamos com milhares de cabo-verdianos. Neste universo lusófono há milhares de cabo-verdianos que têm o português como língua materna. Isso não impede que sejam cabo-verdianos legítimos, tão cabo-verdianos como aqueles que nasceram no arquipélago.

A Direção do Património Imaterial, com a posição assumida no seu parecer, discrimina o português como língua materna de muitos cabo-verdianos e, por esta via, discrimina milhares de cabo-verdianos que, tal como os que vivem nas ilhas, são herdeiros legítimos de um património cultural do qual muito se orgulham e que inclui como um dos seus pilares fundamentais a língua portuguesa.

 A confusão acentua-se ao se afirmar que «Todo o fundo cultural cabo-verdiano se processa na língua materna – o crioulo cabo-verdiano- e não na língua portuguesa.»

Afirmar que «todo o fundo cultural cabo-verdiano se processa na língua materna», entenda-se, língua cabo-verdiana, é, no mínimo, esquecer que o texto da DECLARAÇÃO DA INDEPENDÊNCIA NACIONAL está redigido em português, é ignorar que toda a documentação histórica referente ao PROCESSO DE TRANSIÇÃO PARA A DEMOCRACIA está também redigida em português, é desconhecer que praticamente todos os livros de ficção, contos, poesia, ensaios, tratados, manuais científicos e técnicos, livros de História ou sobre a História de Cabo Verde estão escritos em língua portuguesa, muitos deles por antigos e por atuais escritores e investigadores, como alguém bem lembrou, é pôr em causa, agora sim , uma parte fundamental do «fundo cultural cabo-verdiano»

Diz, ainda, o parecer da Direção do Património Cultural Imaterial que a «UNESCO exclui, em termos práticos, as línguas da lista de classificação». Falso!

O que estabelece a UNESCO na Convenção Para a Salvaguarda do Património Cultural Imaterial, no seu art.º 2º, ponto 2, publicada em Paris, em 17 de outubro de 2003 é o seguinte:

O «património cultural imaterial tal como é definido no parágrafo I manifesta-se nomeadamente nos seguintes domínios:»

(a) «tradições e expressões orais, incluindo a língua como vector do património cultural imaterial;».

Portanto, a referida Convenção não exclui a língua como afirma o parecer em referência. Pelo contrário, inclui a língua como «vector do património cultural imaterial».

Continuando, no ponto 1 do parecer, a Direção do Património Imaterial coloca como pressuposto a orientação da UNESCO – que é correta – que diz que «a classificação de um bem como património cultural imaterial, seja a nível nacional ou da própria UNESCO, independe do alcance, da abrangência territorial ou do número de praticantes», para, logo a seguir, no mesmo parecer, registar que o português com o alcance e a abrangência territorial que tem e com o grande número de praticantes que regista, não pode ser classificado como património cultural imaterial, sendo, por isso, de acordo com o parecer, «desadequados os argumentos que servem de fundamentação à proposta» de Classificação da língua portuguesa como Património Cultural Imaterial Nacional de Cabo Verde. Surpreendente e incompreensível.

Resumindo, a Direção do Património Imaterial, o Instituto do Património Cultural, e, consequentemente, o Ministério da Cultura não reconhecem a língua portuguesa como património cultural imaterial de Cabo Verde.

No que tange à Lei nº 85/IX/2020 de 20 de abril que tem como objeto a Proteção e Valorização do Património Cultural, chamo desde já a atenção para a parte referente ao Património Cultural Imaterial. O seu art. 11º – Proteção de bens – dispõe que “A proteção legal dos bens que integram o Património Cultural assenta no inventário e na classificação dos bens móveis e imóveis.”

O art. 12º da mesma lei que aborda a questão do Inventário diz o seguinte:

Entende-se por inventário o levantamento sistemático, atualizado e tendencialmente exaustivo dos bens culturais existentes a nível nacional, com vista à respetiva identificação e salvaguarda.

A iniciativa de inventário pertence às comunidades, grupos, indivíduos, organizações não-governamentais, às estruturas autárquicas locais e ao Estado, sob orientação, supervisão e validação do serviço da administração patrimonial competente.

O inventário abrange os bens independentemente da sua propriedade pública ou privada.

O inventário inclui os bens classificados e os que, de acordo com os nºs 1, 2 e 5 do artigo 2º, mereçam ser inventariados. Exclui, portanto, os bens classificados como património cultural imaterial referidos nos números 3 e 4 do artigo 2º. que acabamos de assinalar.  Ou seja, os bens classificados como património cultural imaterial, à luz da lei em vigor, não estão obrigatoriamente sujeitos a inventário.

O mesmo artigo 12º do referido diploma dispõe claramente que serão objeto de inventário os bens materiais, e ainda assim apenas os bens dessa categoria que «mereçam ser inventariados».

Conclusão:

Ao contrário do Sr. Presidente da República*, o Instituto do Património Cultural e a respetiva tutela não reconhecem a língua portuguesa como Património Cultural Imaterial de Cabo Verde.

O parecer emitido pela Direção do Património Cultural Imaterial distorceu completamente o conteúdo da Convenção Para a Salvaguarda do Património Cultural Imaterial da UNESCO publicada em 17 de outubro de 2003.

Na Constituição da República de Cabo Verde, no seu art.  204 – competência legislativa – não há nada que diga que no exercício de funções legislativas, o Executivo tenha COMPETÊNCIA LEGISLATIVA EXCLUSIVA em matéria de Cultura, o que quer dizer que a Assembleia Nacional não está impedida de legislar sobre essa matéria.

O artigo 12º da Lei nº 85/IX/2020, de 20 de abril, que tem como objeto a Proteção e Valorização do Património Cultural isenta o património cultural imaterial de inventário, de acordo com os números 3 e 4 do artigo 2º do mesmo diploma.

O artigo 17º, da Lei nº 85/IX/2020 de 20 de abril estabelece que o processo de classificação de um bem cultural pode ser desencadeado pelo Ministério da tutela e por outras entidades, não sendo, por isso, essa competência reservada ao Ministério da Cultura.

O projeto de lei para a elevação da língua portuguesa a Património Cultural Imaterial de Cabo Verde, submetido à Assembleia Nacional, visa travar o desgaste e a desvalorização preocupantes da língua portuguesa no país face à passividade, inoperância, incompreensão ou até mesmo resistência na aplicação da lei em vigor de proteção e valorização do património cultural de todos nós.

Nota:

*Extrato da entrevista concedida pelo sr. Presidente da República de Cabo Verde a alguns órgãos de comunicação social no dia 28 de fevereiro do corrente ano, entrevista transmitida pela RTC – Televisão de Cabo verde:

«(…) É preciso que a língua cabo-verdiana que é a nossa língua materna, a nossa língua de afeto, a nossa língua de todos os dias, deixe de ser apenas uma língua do espaço informal para ganhar mais em termos de formalização, para ser usada também nos espaços formais e a língua portuguesa que é mais do espaço formal possa informalizar-se para ser usada nos espaços de afeto, nos espaços de informalidade. É fundamental que o cabo-verdiano domine essas nossas duas línguas que são nosso Património e por isso temos de fazer um esforço para cumprirmos a constituição e passarmos a ensinar na língua cabo-verdiana e melhorar a aprendizagem do português e das outras línguas. (…)»

Publicada na edição semanal do jornal A NAÇÃO, nº 810, de 09 de Março de 2023

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