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Vinícius Júnior antes e agora, por Urariano Mota

EFE

Vinícius Júnior antes e agora*

por Urariano Mota

Os insultos racistas contra Vinícius Júnior nestes dias, que geraram a mais justa indignação do jogador, me fazem lembrar o que houve antes contra outro craque, Grafite, que hoje é comentarista de televisão. Em artigo publicado no site espanhol La Insignia, em abril de 2005, escrevi:

Em um capítulo dos insultos, negro safado, negro de merda, macaco, ocupariam um bom e infamante lugar. Que nos perdoem os que não são negros. Não sabem. Ao que um dia foi desonra ser negro, ter a pele escura, os lábios grossos, cabelo “ruim”, nariz chato, uma desonra que não vinha  dessas características físicas, mas da história de escravos, de escravidão, de gente submetida à condição de animais de duas pernas, quis a condição de sobrevivência da desonra no século vinte e um o acréscimo desses adjetivos, safado de merda, filho da puta, e esta pérola do insulto, que faz de um substantivo uma qualificação, a palavra macaco. Os brancos, os não-negros, não sabem. Gostaríamos de ter uma pequena ajuda da sua imaginação.

Uma qualificação diferente é o negro simplesmente adjetivo. Aqui ele é uma caracterização rebaixadora a desqualificar. Carlos Gomes, o negro. Padre Vieira, o negro. Cervantes, o negro, se assim fosse possível desqualificá-lo. Isto quer dizer que certo homem tem essa mancha, que ele não é tão grande assim, que o homem não tem sangue bom, vale dizer, que ele não é da corte e do reino do sangue azul. Se o seu próprio nome, isolado, tem valor, pelo adjetivo descobre-se o ferrete, a marca do servo, de coisa, de bem semovente. Diz-se, pelo adjetivo posposto: não passa de um negro. Esse alguém será na melhor das hipóteses um homem que furtou o seu lugar na sociedade. Ou assaltou, por violência, ou não passa de um farsante, um dissimulado, que deseja estar onde não pode nem deve. Machado de Assis, o negro. Isso diminui para Machado, o negro. Que no final é Machadinho, um negro. Um gênero comum de cavalo baixeiro.

Se assim é, se assim se faz com pessoas de reconhecido valor, em momentos de intenção malévola, mas de serena má intenção, o que dizer, o que fazer com pessoas, com outros negros? Em momentos de raiva, de ódio, de explosão de instintos que pedem sangue, como ofender a pessoas, digo, negros? Para esses casos o engenho humano criou o reforço, o pleonasmo da condição histórica: negro de merda, negro filho da puta, acompanhado de cuspes na cara. Ou então macaco, macaquito, uh! uh! uh!, que melhor se faz se acompanhado por gestos simiescos. Em peso, nos estádios de futebol da Europa, ou até nas deslocadas Londres no Hemisfério Sul. Não digam por favor que isto são coisas do futebol, que são coisas da adrenalina, que no calor da partida fere-se, quebram-se pernas, insulta-se e mata-se e depois se esquece. Não digam por favor que isto é coisa restrita ao mundo da partida, do jogo, ou como diria algum súdito da Rainha na América Latina, que esto no es fair play.

Que jogo limpo? Há muito o futebol deixou de ser somente um jogo, uma partida. Há muito ele é um teatro vivo, uma representação em que todos são atores, dos jogadores ao público, que interferem e mudam os dois atos, em noventa minutos. O autor desse novo drama passou a ser a própria sociedade. Há muito que esse jogo deixou de ser o encontro de duas equipes ideais, de jogadores ideais, que amam o esporte como uma fruição. Aqui, em lugar da confraternização, da comunhão de pessoas, dos ideais olímpicos, mais que nunca, vale tudo: roubos, furtos, assaltos, mutilações, mortes, pela razão mui simples que o importante é ganhar, de qualquer forma e jeito. Ou melhor, de preferência pelos expedientes mais sórdidos. Envenenamento, suborno, água suja, armadilhas, ciladas, agressões que ponham ferimentos no corpo e alma do adversário, do inimigo, daquele que deve ser destruído. Esta é a regra do fair play do novo drama, do novo futebol: ganhar. Se possível sem futebol.

Quando o jogador Grafite, da equipe do São Paulo, foi chamado de “negro de mierda”, de “mono negro”, os dirigentes do Quilmes, time argentino, nada viram nisso que merecesse uma denúncia policial. Qué pasa? “Si Grafite se va a ofender porque alguien le dice una grosería, entonces que vaya a jugar con las muñecas. No es para el fútbol”. E para esse espanto, para essa estranheza, compreendemos-lhe alguma razão. Ora, desde a Guerra do Paraguai, no século XIX, que argentinos chamavam às tropas brasileiras, fortalecidas por negros bons de morrer, então escravos, de “macaquitos”. A alcunha pegou, e mais voltava e volta nos conflitos, sempre que se desejava e deseja ressaltar as diferenças entre latinos miscigenados, negros, e os latinos menos misturados, os argentinos, que Jorge Luís Borges dizia serem os únicos ingleses conhecidos em sua vida. Para não ir muito longe, lembramos que em 1996, ao saber que a seleção de futebol argentina iria jogar contra a seleção do Brasil ou da Nigéria, assim anunciou os adversários o periódico Olé: “Que venham os macacos”. Ora, é natural. Negros, macacos, tudo a ver. Tão natural quanto primos pobres que se insultam, que não se reeducam nem na desgraça, nem mesmo quando a RAF lhes mostra que todos são macacos. Daí que compreendamos que chamar a um atleta negro, que leva o nome de Grafite, de negro de mierda, de negro hijo de puta, e temperar tais naturalidades com cuspidas em seu rosto, nada é demais, para alguns periodistas argentinos. E que completem, mui britanicamente, que faltou a um simples negro o low profile.

E agora retomo para estes dias, como se a história houvesse parado, pois volta, ou melhor, continua  o racismo. Retomo ao grande Vinícius Júnior. O nosso craque negro, representante da gente brasileira, é prova de que a história avança, apesar dos recuos que sobrevivem. A sua indignação hoje é universal contra os insultos no futebol e além dos estádios. Da ONU ao governo do Brasil, todos exigem urgentes providências e punição. Então aquilo que escrevi antes sobre Grafite, com mais força digo agora:

Um a zero fizeste para nós, Vinícius Júnior. Com a tua indignação, que belo gol, homem! Todo o mundo se levanta nos estádios.

“Um a zero”, de Pixinguinha

*Vermelho https://vermelho.org.br/coluna/vinicius-junior-antes-e-agora/

Urariano Mota – Jornalista do Recife. Autor dos romances “Soledad no Recife”, “O filho renegado de Deus” e “A mais longa duração da juventude”

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