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Invista na cerâmica brasileira como arte

Alguém ainda duvida que cerâmica é, sim, arte? Relendo um artigo sobre ceramistas internacionais, decidi produzir a coluna de hoje sobre esse universo de argilas, cores, texturas e materiais que a cada dia encanta mais os brasileiros.

A história da cerâmica confunde-se com a da civilização e da criação do fogo. Antes do final do Período Neolítico (de 26.000 a.C. a 5.000 a.C.), a habilidade na manufatura de peças de cerâmica se espalhou pelos territórios da época. Não sabe como chegou na Europa, na África e na Ásia, mas as tumbas dos faraós do Antigo Egito comprovam que as cerâmicas estavam presentes em seus vasilhas de alimentos, vasos de barro, objetos e utensílios domésticos, substituindo a pedra trabalhada.

Com o passar do tempo, a cerâmica tem crescido seu protagonismo na casa das pessoas e no universo artístico da atualidade, começando a explorar novas formas de utensílio ou de peças artísticas. Ganhou cores, personalidade, caraterísticas de diferentes regiões, materiais, esmaltes e incorporou as características das culturas nas quais está presente. Devido à durabilidade, estão presentes em revestimentos e até em componentes dos foguetes espaciais. Com a proliferação, cada povo desenvolveu suas técnicas. Foi assim em Portugal, na Espanha, no Oriente Médio, na China e em uma infinidade de lugares. Os italianos, por exemplo, seguiram a jornada etrusca e grega. Depois do Renascimento, muitas cidades investiram na técnica como Volterra, Faenza, Deruto e Montelupo.

Artistas que trabalham com cerâmica têm contribuído para o mundo da arte há séculos. Da cerâmica pré-histórica às antigas ânforas gregas, da ascensão da porcelana na Ásia e na Europa ao movimento Arts and Crafts na Inglaterra e nos Estados Unidos, as tradições da cerâmica há muito fascinam todos. Não há dúvidas de que a cerâmica tem uma longa história e que tem evoluído ao longo do tempo com as mudanças e melhorias da tecnologia e dos materiais. Esses desenvolvimentos levaram a diferentes estilos de cerâmica em diferentes áreas. A essência da cerâmica japonesa geralmente inclui os conceitos de Wabi (sabor tranquilo), Sabi (simplicidade elegante) e Shibui (austeridade). Poucas coisas capturam tanto a essência do Wabisabi quanto a cerâmica japonesa. Pode-se dizer que Wabisabi é um ideal filosófico japonês, assim como uma abordagem estética centrada na aceitação da transitoriedade e da imperfeição dos objetos e dos seres humanos. Na cerâmica, os japoneses chegam a admirar efeitos acidentais, superfícies deformadas e outras imperfeições que podem lembrar as formas naturais. Ou seja: o imperfeito, impermanente e incompleto pode ser reconhecido como uma bela arte.

Par Imperfeito, obra de Cristina Myrrha
Par Imperfeito, obra de Cristina Myrrha (Crédito:Nina Jacob/Divulgação)

Os brasileiros, que tiveram seus primórdios com a cultura indígena, em especial na região da Ilha de Marajó, praticamente abandonaram esse legado para abraçar o modelo da cultura japonesa. Um bom exemplo das possibilidades da argila e da capacidade de criação dos ceramistas pode ser visto na exposição coletiva que está na Pinacoteca de São Bernardo do Campo (SP). A curadoria é da talentosa Cibele Nakumura, ceramista há 22 anos e curadora desde 2017. Segundo ela, o objetivo é alçar a cerâmica e seus artistas cada vez mais ao patamar das grandes artes. Por isso, o nome da exposição “Vestir Cerâmica” mostra as possibilidades de enfeitar a si mesmo e enfeitar a casa, como se a cerâmica fosse uma extensão de nós mesmos e de nosso modo de viver. Ao todo, 24 ceramistas participam da mostra para trazer ao público a diversidade de usos da argila na criação de obras artísticas e de design: Kimi Nii (como convidada de honra) e Beth Novi, Bia Monteiro, Cristina Myrrha, Cynthia Ragosta, Denise Braune, Denize Riva, Diferraro, Eliana Kanki, Eunice Jardim, Fátima Rosa junto com Maria Aparecida Panichi, Georgia Hannud, Kira, Laura Martínez, Leila Domingues, Lica Cruz, Malu Serra, Paula Alcântara, Rosangela Lucena, Salete Lottermann, Selma Bombachini, Suzane Farias, Teresa Cristina e Val Genú.

Mergulhar no universo da cerâmica é imergir dentro de nós mesmos. Hideko Honma é para mim a principal sensei (mestre) do universo ceramista brasileiro e sinônimo de cerâmica utilitária perfeita. Como filha de imigrantes japoneses, formou-se em Artes Plásticas pela Faculdade de Belas Artes de São Paulo, iniciou pós-graduação em História da Arte pela Universidade de São Paulo e deu aula de Estética e História da Arte por uma década. Estudou cerâmica na tradicional região de Arita e Imari, na província de Saga (Japão), onde sua primeira lição foi repetir mil peças cilíndricas, no torno. Alia as técnicas aprendidas com mestres ceramistas japoneses com a rica matéria-prima do Brasil. São as cinzas de galhos de café, bambu, grama, bananeira e uma infinidade de podas vegetais que originam seus maravilhosos esmaltes vidrados. Costuma dizer que é uma pequena aprendiz de ceramista, mas sua trajetória mostra o contrário, com suas peças presentes nos principais restaurantes do Brasil.

Hideko concorda que cerâmica é arte. Para ela, tudo está ligado à intenção de quem faz e pensa este fazer. Para ela, se pensarmos no conceito Ichigoichie, ou Art Kogei, jamais teremos dúvidas sobre a cerâmica como arte, mesmo diante de uma chawan (tigelas de chá) de uso cotidiano. A cerâmica na sua origem foi feita para melhorar a qualidade de vida das pessoas na sociedade e peças de cerâmica foram feitas principalmente para promover seu uso prático. À medida que a evolução da sociedade avança, a linguagem da cerâmica faz o seu papel: avança e se modifica. Por ser multidisciplinar, a cerâmica interage com as novas tecnologias e novíssimas linguagens que hoje nem damos conta de compreender. “É arte o fato de estarmos fazendo uma reflexão, imaginando, comunicando e documentando este momento; e a cerâmica é o puro documento de um tempo”, diz, destacando a comunicação e o registro da memória do seu tempo.

Falando de tempo, ela perdeu a conta de quantos milhares de peças e garrafas que já produziu. Em cada cerâmica, ela consegue identificar o seu tempo como artista, assim como seu humor no momento que as criou, com cores exclusivas, texturas especiais e com o uso de cinzas de vegetação que foram transformadas durante as queimas a 1300 graus Celsius de cada utilitário produzido. Ela adora produzir principalmente as chawan’s e seu encanto pelo universo da cerâmica transcende seu ateliê para chamar atenção nos mais importantes restaurantes de São Paulo e na casa de milhares de brasileiros que admiram sua perfeição. Sem dúvida, a estética Wabisabi (a beleza criada pela ação do tempo) está impregnada em suas cerâmicas, nos humanizando nesses novos tempos pós-pandemia.

Outro bom exemplo de cerâmica como arte são as maravilhosas peças de Kimi Nii. Ela é uma grande artista que nasceu em Hiroshima (Japão) e mudou-se para o Brasil aos nove anos. Formou-se em Desenho Industrial na Faculdade de Artes Plásticas da FAAP e começou a se dedicar à cerâmica de alta temperatura para criação de esculturas e objetos utilitários em 1978. Sua formação foi a base para peças com desenho limpo, forma pura e contornos geométricos racionais. Costuma dizer que aos poucos foi aprendendo a grande lição de humildade e de entendimento das propriedades do fogo, da água, ar e terra. Com isso, começou a tirar proveito das opções que a argila poderia dar.

Fez mais de vinte exposições individuais e mais de sessenta coletivas. Para ela, um verdadeiro ceramista atinge um grau elevado quando é considerado um tesouro nacional, com a sua arte sendo respeitada por todos e recebendo benefícios do País para viver exercendo seu processo criativo com dignidade, fora o prestígio que recebe pelo público apreciador da sua arte. Para ela, o maior problema aqui no Brasil e em alguns países do Ocidente é que a palavra ‘artesanato’ é separada de arte, sofrendo um preconceito na base. “Muitas obras dos povos originários do Brasil são verdadeiras obras de arte em originalidade, linguagem e expressão, mas são comercializados e explorados de uma forma que não favorece o artista”, diz.

Por que o Brasil ainda não valoriza cerâmica como já ocorre em outros países? Causa estranheza para Kimi Nii, assim como para mim, que na China a maior parte das obras expostas são cerâmicas e porcelanas contando a história de séculos e milênios. No Japão também. Vale lembrar que, atualmente, o respeitado artista Wei Wei, que considero a nova voz mundial da arte política e do ativismo social, usa maravilhosas instalações de cerâmica como material de expressão de suas ideias e quando há um propósito maior por trás da obra, ninguém fica prestando atenção nas imperfeições das peças.

A dica para quem pensa em comprar a primeira peça de cerâmica como objeto de arte é consultar antes os entendidos no assunto. Além disso, Kimi Nii dá uma orientação muito importante: “cada um deveria obedecer ao instinto e ser sincero com seu sentimento para escolher aquela peça que mais fala com você, fazendo bem para seus olhos ou seu coração”.

Para nossa sorte, a produção de cerâmicas no Brasil cresce a cada dia e tem todas as condições de ampliar sua presença em museus e no cenário artístico mundial. Essa coluna é dedicada a Malu Serra (que ensinou os primeiros passos da argila e orienta a minha arte), a Cibele Nakumura (pelos ensinamentos especiais na busca por obras autorais), a Cristina Myrrha (por me mostrar como produzir peças artísticas), a Hideko Honma (pela paciência e perfeição) e todos os meus colegas ceramistas que mostram todos os dias as infinitas possibilidades que a argila pode trazer para as nossas vidas. Alguém duvida? Se tiver uma boa história para compartilhar, aguardo sugestões pelo Instagram Keka Consiglio, Facebook ou no Twitter.

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